domingo, 18 de março de 2007

A censura por dentro


Eduardo Brito, de Brasília
Uma visão diferente da censura, mostrada por dentro, é o que pretende o recém-lançado Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, de Beatriz Kushnir, doutora em História Social. Não por acaso sua chegada às livrarias, editado pela Boitempo, coincidiu com os 40 anos do golpe de 1964. Consiste em um aprofundamento e sistematização de Perfis Cruzados, de 2002, em que a autora mostrou a freqüência com que, em especial no Estado Novo, profissionais da imprensa terminavam por colaborar com a ação da censura, seja transmitindo informações, seja trabalhando diretamente como censor.
Cães de Guarda: Jornalistas e Censores apóia-se em uma pesquisa intensiva sobre as relações entre o regime militar e os órgãos de imprensa, da censura à colaboração. De forma didática, Beatriz Kushnir examina a estruturação da censura, suas bases jurídicas e as diretrizes por ela adotada, baseando-se em extensa pesquisa documental, além de entrevistas, inclusive com onze censores. Assim ela mostra como se organizou a censura e os diferentes matizes que adotou. Para usar expressão cara a um dos ideólogos do regime, o general Golbery do Couto e Silva, a censura passou por sístoles e diástoles, ou seja, por períodos mais duros e mais brandos – que curiosamente não coincidiam com os endurecimentos e abrandamentos do regime. Por exemplo, justamente quando a abertura do presidente Ernesto Geisel ensaiava os primeiros passos houve um endurecimento brusco da censura, então sob o comando do general Antonio Bandeira.
Nem sempre é fácil acompanhar a linha de raciocínio de Beatriz Kushnir, que vai e volta no tempo. Mas sua pesquisa histórica não pode ser menosprezada. Mostra-se, por exemplo, como na década de 20 o governo federal tornou a censura uma atividade próspera, que trazia rendimentos para os seus funcionários – um censor ganhava 8,4 contos de réis, uma quantia elevada para a época – graças aos emolumentos cobrados aos empresários dos setores a serem a ela submetidos.
Diferentemente de outros trabalhos sobre a censura, Cães de Guarda não constitui um apanhado de historinhas que acabam por traçar dela um retrato meio ridículo, como algo de truculento mas trapalhão, que mistura violência e ineficiência. Ao contrário, mostra que a repressão à liberdade de expressão freqüentemente conseguiu cumprir seus objetivos: temas foram banidos da mídia, uma enorme quantidade de informações deixou de chegar aos cidadãos, obras artísticas viram-se mutiladas, tudo como queriam os gestores do processo.
O livro mostra também como a censura sempre caminhou lado a lado com o endurecimento ou o abrandamento de regimes. À decretação do Estado Novo seguiu-se não apenas a institucionalização de um processo repressivo já adotado com base na legislação de exceção que dois anos antes ultrapassara a semiliberal Constituição de 1934, como a adoção de um sistema profissional destinado a aprofundá-lo. Seu principal instrumento, embora não o único, foi o famoso DIP. Quando veio a redemocratização de 1945, o DIP fora transformado em Departamento Nacional de Informações, extinto algum tempo depois – mas a essa altura já surgira, de uma reformulação da Polícia Civil do Distrito Federal, o Departamento Federal de Segurança Pública, que herdaria funções e funcionários de ambos. Em plena vigência da nova Constituição, uma das mais liberais que o Brasil teve, o Decreto nº 24.011, de maio de 1948, determinava que o ministro da Justiça poderia autorizar “a assistência aos trabalhos de censura prévia”. Quem faria essa assistência? Claro, o Departamento Federal de Segurança Pública, por meio do Serviço de Censura de Diversões Públicas, estabelecido dois anos antes. Os funcionários de um e de outro foram com freqüência reaproveitados. Alguns deles sobreviveriam para exercer suas funções após 1964.
Há capítulos especiais para as normas internas da Censura. Contêm pérolas como as instruções que se transmitiam aos veículos nos anos 70:
- Seios, apenas mostrar um;
- Genitália, nem à sombra;
- Nádegas, só se diluídas com recursos técnicos;
- Palavrão, só se estiver apropriado ao contexto.
Também há uma coleção de bilhetinhos da censura, com uma revelação. Normalmente são atribuídos ao período que se seguiu ao Ato Institucional nº 5, quando circularam como prática rotineira. No entanto, em junho de 1968, seis meses antes do AI-5, o general Luiz Carlos Reis de Freitas, superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, inaugurava a prática, dirigindo-se especificamente ao Correio da Manhã, para proibir noticiário sobre manifestações estudantis. Cães de Guarda faz mais do que relacionar os bilhetinhos – mostra como eram produzidos, distribuídos e recebidos.
Ao se mostrar a censura por dentro, também se tem uma nova série de casos que seriam divertidos se não revelassem uma realidade sombria. Por exemplo, a aparição de um certo Movimento Auxiliar de Recuperação da Juventude Brasileira, que enviou ao Ministério da Educação, em 1972, um apelo para enrijecer a censura. O Ministério, por meio de sua Divisão de Segurança e Informações, fez questão de notificar o Serviço de Censura de Diversões Públicas das propostas do grupo. Ou ainda de um abaixo-assinado enviado em 1970 ao Ministério da Justiça cobrando “medidas governamentais contra o abuso de piadas de mau gosto que estariam sendo feitas sobre portugueses em programas de rádio e televisão”. O secretário particular do ministro da Justiça expediu o abaixo-assinado ao Serviço de Censura – cujo chefe reagiu com a proposta de que seus subordinados vetassem qualquer programa que apresentasse esse risco.
Embora a autora também relate episódios ilustrativos das difíceis manobras dos veículos que tentavam resistir ou burlar os censores e dedique uma parte significativa do livro a examinar a postura de veículos que em sua opinião se excederam ao colaborar com a censura, sua maior contribuição é mesmo mostrar os bastidores da repressão. Cães de Guarda traça um perfil dos censores e do seu trabalho, assim como de sua visão de mundo, que permanecia inédita. Contribui assim, em primeiro lugar, para que se conheça melhor a evolução histórica – tanto do ponto de vista legislativo quanto de um exame de seus quadros – da censura no Brasil. E vale, não só para quem não viveu os tempos da mais recente onda repressiva, mas também para quem já exercia atividades na mídia durante esse tempo, para que se compreenda a lógica interna do sistema de censura e de seus integrantes.
Cães de Guarda serve, por fim, para mostrar como é difícil cortar a cabeça da hidra. Assim como a censura fora e voltara por muitas vezes antes, mantendo-se sua estrutura adormecida entre a ida e o retorno, não faz tanto tempo que um ministro da Justiça, Fernando Lyra, declarou que ela desaparecera do Brasil para sempre. Foi no final de 1985. Meses depois, em fevereiro de 1986, atendendo oficialmente ao pedido de uma entidade de donas de casa de Belo Horizonte, o governo brasileiro proibia a exibição do filme Je Vous Salue Marie, do cineasta francês Jean Luc Godard – e recebeu, pela decisão elogios de um antecessor de Lyra, o ex-ministro Armando Falcão, o mesmo que, anos antes, proibira a exibição do Balé Bolshoi no Brasil.
[www.anj.org.br/jornalanj/index.php?q=node/558]

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