quinta-feira, 17 de maio de 2007

“Oportunismo mercadológico” - Armando Sartori

[OBSERVAÇÃO FEITA POR BEATRIZ KUSHNIR: Para que não reste qualquer dúvida, todos os dados abaixo são fruto de minha pesquisa de doutoramento e estão publicadas no livro Cães de guarda].


Na época mais difícil da ditadura, a Folha da Tarde foi o “diário oficial” da repressão. Hoje, a Folha de S. Paulo, o jornal diário mais importante do País, procura se apoiar num “mandato” baseado no mercado sabia de nada, assim como Caldeira, “a pessoa que tinha mais afinidade com esse setor do regime militar”. Ele também admite que a Folha da Tarde era dominada pela
direita. Sua dificuldade parece ser a de explicar porque seu pai colocou na direção da FT, em meados de 1969, o policial Antonio Aggio, que havia sido designado anteriormente, também por ele, para dirigir o diário Cidade de Santos, pertencente ao grupo.
Aggio chegou à FT com a missão de desmontar o projeto anterior, iniciado em agosto de 1967, quando Frias e Che Guevara. Não era nada, exceto oportunismo mercadológico”, diz. Miranda Jordão – ele mesmo um homem de esquerda – montou então uma redação com esse perfil. Dela participaram pessoas que se destacariam como militantes políticos e jornalistas da imprensa independente de oposição à ditadura. Passaram pela FT nesse período nomes como Arlindo Mungioli, Chico Caruso, Frei Betto, Lourenço Diaféria, Luís Clauset, Luís Edgar de Andrade, Luís
Merlino, Paulo Sandroni, Raimundo Pereira, Rose Nogueira e Tonico Ferreira, entre outros.
A experiência da FT “de esquerda” não durou muito, no entanto: o jornal não teve o sucesso comercial esperado e a situação política mudou – em dezembro de 1968, foi editado o AI-5 e teve início a fase mais dura da ditadura. Pouco tempo depois, Frias demitiu Jordão. E, em meados do ano seguinte, chamou Aggio, que desde 1962 pertencia aos quadros da Secretaria de Segurança Pública paulista (ele tornou-se assessor do delegado
Romeu Tuma, que por sua vez era diretamente subordinado ao delegado Sérgio Paranhos Fleury).
A partir do ingresso de Aggio na FT o desmonte da antiga redação se completou. Outros policiais também foram para lá e para a Agência Folha, um departamento criado por Miranda Jordão a pedido de Frias, na qual o próprio Aggio trabalhou após deixar a FT em 1984.
O resultado prático da mudança é que a FT se tornou, como escreveu Kushnir, uma espécie de “diário oficial” da Oban – a Operação Bandeirantes, organização repressiva semiclandestina financiada por empresários a partir de 1969. “O clima de delegacia policial resistiu 15 anos e o jornal ganhou o apelido de ser o de ´maior tiragem´ em São Paulo, não por causa da circulação, mas pelo número de tiras [policiais] que empregava”, disse ela em depoimento para o site Observatório da Imprensa (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br).
A historiadora menciona em seu trabalho a visão de Cláudio Abramo a respeito desse processo. Abramo, jornalista de esquerda, foi convidado por Frias para assumir o posto de secretário de redação da Folha de S. Paulo em 1965. Em seu livro A regra do jogo (Companhia das Letras, 1988), ele qualifica a Folha da Tarde dessa época como “o jornal mais sórdido do País”.
Freqüentemente, a FT agia para legitimar as barbaridades cometidas pelos órgãos de repressão, aceitando sem a menor crítica as versões apresentadas pelas forças de segurança. Chegou, segundo depoimento a Kushnir de Ivan Seixas, um militante do Movimento Revolucionário Caldeira decidiram relançar esse jornal que, criado em 1949, deixou de circular dez anos depois. O objetivo básico era concorrer com o Jornal da Tarde, irmão caçula do Estadão, criado pouco antes.
Experiência frustrada A historiadora Beatriz Kushnir, autora de Cães de guarda (Boitempo, 2004), pesquisou a trajetória da FT e ouviu, entre outros, o veterano jornalista Carlos Brickman. Ele diz, baseado em informação de Miranda Jordão, que Frias queria “fazer um jornal de esquerda” para “atingir o público de esquerda, os estudantes fascinados pelo Vietnã, pelo Cabo Anselmo, pelo Por quase dois anos, a Folha da Tarde foi um jornal de “esquerda” (ao lado, à esq., em outubro de 1968). Depois do AI-5, a redação foi entregue a jornalistas ligados à repressão (ao lado, à dir., edição de 5 de novembro de 1969). E veículos da Folha da Manhã foram atacados por militantes de grupos clandestinos de esquerda Tiradentes (MRT) preso em meados de abril de 1971, a publicar com horas de antecedência, a morte de seu pai, Joaquim de Andrade Seixas, da mesma organização, em circunstâncias inventadas pelos policiais.
A explicação de Otavinho para o que aconteceu com a FT é que com Miranda Jordão o jornal foi infiltrado por militantes de grupos clandestinos de esquerda. De fato, alguns jornalistas que trabalhavam na redação do jornal eram ligados a algumas dessas organizações. Depois, avalia ele, como reação a isso, o jornal foi ocupada pelos policiais. Já sobre o papel de Caldeira e Frias, os proprietários do jornal, e sobre a enorme diferença de tempo das “ocupações” – 22 meses e meio e cerca de 15 anos, respectivamente – ele nada diz.
As explicações para a FT ter assumido tal papel não são simples. Frias, empresário astuto, viu a possibilidade de explorar um mercado formado pelo público simpatizante da esquerda quando chamou Miranda Jordão. Depois, diante das dificuldades políticas e do fracasso comercial da FT, desmanchou o projeto “de esquerda” e montou um “de direita”. Segundo Cláudio Abramo, “de 1969 até 1972, a Folha atravessou um período negro, em que não havia espaço político algum no jornal”. “Na verdade, o jornal não tinha condições de resistir às pressões do governo, por isso não provocava. Foi uma política muito sábia que Frias aplicou ao jornal”, diz ele.
Nessa situação, Frias e Caldeira provavelmente resolveram não arriscar seu investimento. É bom lembrar que,ao contrário do Estadão e de outros veículos, os jornais da Folha da Manhã jamais sofreram censura prévia. Eles simplesmente obedeciam escrupulosamente às orientações transmitidas pelos censores por telefone, dizendo quais assuntos não podiam ser tratados.
A colaboração com o regime custou a Frias alguns disssabores. Militantes de organizações de esquerda atacaram e incendiaram dois ou três veículos que distribuíam a Folha. Além disso, ameaçaram Frias de morte. Isso fez com que, entre setembro de 1971 e fevereiro do ano seguinte, ele e sua família – que passou a receber proteção de agentes do DOPS – vivessem na sede do jornal.
Elogio ao governo Foi nessa época que Frias assinou pela primeira vez um editorial na Folha. Intitulado “Banditismo”, o texto publicado em 22 de setembro diz que, especialmente no Brasil da época, não havia “lugar para o terrorismo”, porque “um governo sério, responsável e com indiscutível apoio popular está levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social”. Diz ainda que a subversão “está sendo definitivamente erradicada, com o decidido apoio do povo e da Imprensa”.
A astúcia de Frias se manifestaria poucos anos depois, já na fase da chamada abertura política, com a posse do general-presidente Ernesto Geisel, quando o milagre econômico se esgotara e, do ponto de vista político, o regime perdia sustentação rapidamente. A Folha era um jornal rentável, financeiramente saudável e bem equipado. Mas, do ponto de vista editorial e do prestígio político, estava muito abaixo de concorrentes como o Jornal do Brasil e o Estadão que, no entanto, enfrentavam problemas de sustentação.Para fazer frente a eles, Frias, com a ajuda de Abramo, remodelou editorialmente o jornal.
A reforma de então basicamente consistiu em criar a seção Tendências/Debates, à página três, onde intelectuais e políticos de diversas correntes de opinião se expressassem. Mas, entre Frias e Abramo havia diferenças importantes, como reconhece o empresário. “Ele tinha uma visão e eu outra. Ele achava que o jornal (...) tinha que ter uma linha, tinha que ser quase uma coisa doutrinária. (...) Eu não concordava com isso”.
Abramo acabou afastado do cargo em 1977, num episódio envolvendo o colunista Lourenço Diaféria, autor de um artigo considerado ofensivo pelos militares. Diaféria foi preso e a primeira reação do jornal foi publicar no dia seguinte o espaço de sua coluna em branco.
Um interlocutor freqüente de Frias, o general Hugo Abreu, chefe da Casa Militar do governo Geisel e ligado ao ministro do Exército, general Sylvio Frota, telefonou para o empresário e o pressionou. Abramo foi substituído por Boris Casoy, um jornalista de idéias conservadoras, e o espaço da coluna de Diaféria foi ocupado por outros textos.
Segundo Frias, a pressão dos militares ligados a Frota foi muito forte. Mas, para o jornalista Mino Carta, um admirador de Abramo, houve uma “mínima pressão”. “Digo que foi ‘mínima pressão’ porque o senhor Frias estava envolvido na pior das candidaturas possíveis na sucessão do general Geisel. A Folha apoiava o Frota. O Cláudio Abramo foi afastado por isso”.
Um dos argumentos que reforça essa tese é o de que cerca de um mês mais tarde Frota foi demitido do cargo, após tentar, sem sucesso, um golpe contra Geisel. Mas, mesmo diante da derrota política de Frota, Casoy foi mantido no posto. A ascensão de Otavinho ao comando da Folha de S. Paulo a partir de meados dos anos 1980 fez seu projeto editorial ganhar uma feição mais sofisticada. Mas, por trás dela pode-se enxergar a essência do pensamento de Frias, que sempre viu o jornal basicamente como um negócio. Já em 1984, quando assumiu o leme da Folha, Otavio disse numa entrevista à revista IstoÉ/Senhor: “(...) eu me pergunto se não é preferível um jornal que se locomove de acordo uma lógica de marketing, ou seja, de um compromisso com o seu público, a um jornal que se locomove com uma lógica fantástica, fantasiosa, quer dizer, com um compromisso, com um código, com um ideário, com uma doutrina qualquer que aquele jornal quer impor a ferro e fogo”. De certa forma, Otavinho descreveu os termos do debate entre seu pai e Abramo. E justificou o “mandato leitoral” que a Folha julga ter conquistado.

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