segunda-feira, 2 de março de 2009

11.111/2005

Numa notinha de canto, foi publicado ontem:

O Globo EDIÇÃO DO DIA 01.03.2009

PANORAMA POLÍTICO - Página 2

de Brasília
Revisão da História
Depois de seis anos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso diz que assinou o decreto prorrogando o prazo de sigilo dos documentos oficiais sem ter conhecimento do teor. Segundo FH, o decreto foi assinado “como rotina”, encaminhado pela “secretaria que tratava de assuntos militares”, em uma pilha de papéis, e não tinha a assinatura do ministro responsável. “Houve, por conseqüência, seja um descuido burocrático, seja má-fé de alguém não especificado”, disse ele à coluna.


Polêmica reaberta
O assunto voltou à tona agora durante a gravação dos depoimentos para o documentário sobre Manoel Fiel Filho, operário morto na ditadura militar. Em 2004, diante de críticas, Fernando Henrique deu outra versão. Disse ter assinado o decreto “sem medir as conseqüências”. O presidente Lula alterou a regra, mas manteve a possibilidade de documentos públicos federais serem guardados em sigilo indefinidamente. O governo alega, reservadamente, que a preocupação é com documentos do Itamaraty, como os referentes à demarcação de fronteiras ao final da Guerra do Paraguai e não com os arquivos da ditadura militar. A medida contém uma restrição de acesso aos documentos que se torna injustificável pela delonga temporal que beira a eternidade” — Fernando Henrique".



Texto da 11.111/05

Texto da Medida Provisória 228/04

  • Histórico da questão:

No tocante ao sigilo, assegurou o direito de acesso pleno aos documentos públicos, regulado por decreto que fixaria as categorias deste e que obedecem a uma classificação dos documentos. Assim, no artigo 23 da lei se determina que:

§ 1º Os documentos cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente sigilosos.

§ 2º O acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do Estado será restrito por um prazo máximo de 30 (trinta) anos, a contar da data de sua produção, podendo esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período.

§ 3º O acesso aos documentos sigilosos referente à honra e à imagem das pessoas será restrito por um prazo máximo de 100 (cem) anos, a contar da sua data de produção.

Este ponto foi reformulado seis anos depois, a partir do decreto nº 2.134/97. Elaborado a partir da Comissão Especial de Acesso à Informação de Arquivos, criada pela Portaria nº 11 do CONARQ (Conselho Nacional de Arquivo)[1], de 27 de fevereiro de 1996, da qual participaram representantes dos Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores, da Aeronáutica, do Exército e da Marinha, além de especialistas em documentação e informação e representantes da sociedade civil. (...) [Tendo] como objetivo regulamentar o Capítulo V - Do Acesso e do Sigilo dos Documentos Públicos – da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991.

A Comissão teve a preocupação de analisar exaustivamente a legislação nacional e internacional sobre o assunto, em especial o Regulamento baixado pelo Decreto nº 79.099, de 6 de janeiro de 1977 (Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos – RSAS), a Constituição de 1988 e a Lei nº 8.159/91. No curso dos trabalhos verificou-se que de todos os artigos constantes do Capítulo V, apenas o artigo 23, que ‘dispõe sobre as categorias dos documentos públicos sigilosos’ e o acesso a eles justificava uma regulamentação. Concluído o trabalho, a Comissão encaminhou o anteprojeto de decreto à reunião plenária do CONARQ que o aprovou e o enviou ao Ministério da Justiça para os trâmites necessários à sanção presidencial[2].

Assim, a partir de aprovação ministerial e presidencial, o 2.134/97, em seu capítulo I (Das Disposições Gerais), fixou que

Art. 1º Este Decreto regula a classificação, a reprodução e o acesso aos documentos públicos de natureza sigilosa, apresentados em qualquer suporte, que digam respeito à segurança da sociedade e do Estado e à intimidade do indivíduo.

E no Capítulo “Do Acesso”,
Art. 3º É assegurado o direito de acesso pleno aos documentos públicos, observado o disposto neste Decreto e no art. 22 da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991.

Art. 4º Qualquer documento classificado como sigiloso, na forma do art. 15 deste Decreto, recolhido a instituição arquivística pública, que em algum momento tenha sido objeto de consulta pública, não poderá sofrer restrição de acesso.

Art. 5º Os órgãos públicos e as instituições de caráter público, custodiadores de documentos sigilosos, deverão constituir Comissões Permanentes de Acesso, para o cumprimento deste Decreto, podendo ser criadas subcomissões.

Art. 6º As Comissões Permanentes de Acesso deverão analisar, periodicamente, os documentos
sigilosos sob custódia, submetendo-os à autoridade responsável pela classificação, a qual, no prazo regulamentar, efetuará, se for o caso, sua desclassificação.

Art. 10 O acesso aos documentos sigilosos, originários de outros órgãos ou instituições, inclusive privadas, custodiados para fins de instrução de procedimento, processo administrativo ou judicial, somente poderá ser autorizado pelo agente do respectivo órgão ou instituição de origem.

Art. 12 A eventual negativa de autorização de acesso deverá ser justificada por escrito.


É a partir deste decreto que os documentos públicos, no Brasil, passam a receber classificação para definir seus acessos, a qual é estabelecida em quatro categorias:

¤ Ultra-secretos (“os que requeiram excepcionais medidas de segurança e cujo teor só deva ser do conhecimento de agentes públicos ligados ao seu estudo e manuseio”. Classificados, a partir da produção do documento, em no máximo de trinta anos);

¤ Secretos (“os que requeiram rigorosas medidas de segurança e cujo teor ou característica possam ser do conhecimento de agentes públicos que, embora sem ligação íntima com seu estudo ou manuseio, sejam autorizados a deles tomarem conhecimento em razão de sua responsabilidade funcional”. Classificados, a partir da produção do documento, em no máximo de vinte anos);

¤ Confidenciais (“aqueles cujo conhecimento e divulgação possam ser prejudiciais ao interesse do País”. Classificados, a partir da produção do documento, em no máximo de dez anos);

¤ Reservados (“aqueles que não devam, imediatamente, ser do conhecimento do público em geral”. Classificados, a partir da produção do documento, em no máximo de cinco anos).


Para cada uma destas classes, as restrições dar-se-iam respeitando os perfis de proibição. Para o caso mais extremo, dos ultra-secretos, tem-se:

Art. 16. São documentos passíveis de classificação como ultra-secretos aqueles referentes à soberania e integridade territorial nacionais, planos de guerra e relações internacionais do País, cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado. Parágrafo único. A classificação de documento na categoria ultra-secreta somente poderá ser feita pelos chefes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário federais.
Art. 17. São documentos passíveis de classificação como secretos aqueles referentes a planos ou detalhes de operações militares, a informações que indiquem instalações estratégicas e aos assuntos diplomáticos que requeiram rigorosas medidas de segurança, cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado.

Cinco anos depois, no apagar das luzes do segundo mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso, em 27/12/2002, publica-se o decreto 4.553. Este dispõe sobre a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da Administração Pública Federal. A instituição desta norma foi apreendida como o coroamento de uma série de pressões militares para dificultar o acesso público a documentos sigilosos[3]. Desde a instituição da Lei de Arquivos, sentiam-se as pressões e resistências, dos setores militares, que agia sem cumprir uma legislação específica sobre o tema.
Em 1991, instituída a 8.159, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), sucessora do Serviço Nacional de Informações (SNI) e uma das antecessoras da atual Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), elaborou um projeto para uma nova redação à Lei de Arquivos. Controlada por militares, a SAE desejava que os prazos para manutenção de sigilo da documentação contassem a partir da sua classificação, definindo a categoria de sigilo, e não da sua produção, como o decreto nº 2.134/97 instituiu.
Nesta perspectiva, o prazo para liberar um documento datado de 1970, por exemplo, mas que recebeu classificação, com um carimbo, em 1995 começaria a contar deste ano, e não daquele. Malograda esta tentativa, a SAE perdia para o texto das Leis de 1991 e 1997. Questão tensa que voltou à tona no segundo ano do primeiro mandato de FHC, ao se elaborar decreto nº 4.553/02. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, de 24/4/2003, o 4.553/02 não foi produzido pela Casa Civil. Este se originou do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, comandado à época pelo general Alberto Cardoso. Na mesma matéria, afirma-se que há divergências sobre os motivos que levaram FHC a editá-lo e alterar as normas que estiveram em vigor durante o seu governo, e também sobre o porquê do presidente Lula manter o decreto de dezembro. A matéria expõe, entretanto, que desde sua posse, o presidente vinha recebendo pressões para não revogar o decreto assinado por seu antecessor. Acreditando que o novo governo não ratificaria as disposições do 4.553/02, pouca mobilização no âmbito acadêmico causou. A Lei de Arquivos é clara ao estabelecer o prazo máximo para o acesso restrito aos documentos sigilosos, qual seja trinta anos renováveis por mais trinta
[4].

Assim, juristas compreendem que o decreto que regulamenta a referida lei deve obedecer aos parâmetros e limites por ela impostos, bem como respeitar o prazo máximo estabelecido pela 8.159/91, sob pena de “incidir no vício da ilegalidade”. Fato que ocorre quando o 4.553/02 amplia os limites de todas as classificações (reservado, confidencial, secreto e ultra-secreto), criando o prazo de 50 anos prorrogáveis até a eternidade – portanto, acima do que a lei prevê.

Em seu art. 7º, inciso I o decreto estipula que: “os prazos de duração da classificação a que se refere este Decreto vigoram a partir da data de produção do dado ou informação e são os seguintes: ultra-secreto: máximo de cinqüenta anos;”. Para o ordenamento jurídico brasileiro, vigora o princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inciso II da Constituição Federal de 1988, onde se assegura que “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer senão em virtude de lei”. Desta forma, as normas do Direto compreendem que qualquer obrigação imposta ao cidadão deve ser instituída por meio de lei, e não por força de um decreto – que é um ato do Executivo. O decreto nº 4.553/02 fere a Lei nº 8.159/91 ao dispor no


Art. 7º
§1º: o prazo de duração da classificação ultra-secreto poderá ser renovado indefinidamente, de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado.

Igualmente foi rechaçado como inconstitucional ao macular o inciso XXXIII do art. 5o da Constituição, onde se estabelece que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seuinteresse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja
imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.


Para legalizá-lo, o governo Lula impõe a Medida Provisória nº 228, de 9/12/2004, que regulamenta a parte final do disposto no inciso da Constituição de 1988. Por esta MP, a legalidade jurídica passa a ser:


Art. 2o Exclusivamente nas hipóteses em que o sigilo dos documentos públicos de interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, seja ou permaneça imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, o seu acesso será ressalvado, nos termos do disposto na parte final do inciso XXXIII do art. 5o da Constituição. (…)

Art. 4o O Poder Executivo instituirá, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, com a finalidade de decidir pela aplicação da ressalva prevista na parte final do inciso XXXIII do art. 5o da Constituição.

Parágrafo único. Os Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público da União e o Tribunal de Contas da União estabelecerão normas próprias para a proteção das informações por eles produzidas, cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, bem assim a possibilidade de seu acesso quando cessar a necessidade de manutenção desse sigilo, nos termos da parte final do inciso XXXIII do art. 5o da Constituição. Art. 5o O acesso aos documentos públicos classificados no mais alto grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo e prorrogação previstos no § 2o do art. 23 da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991.

§ 1o Vencido o prazo ou sua prorrogação de que trata o caput, os documentos classificados no mais alto grau de sigilo tornar-se-ão de acesso público, podendo, todavia, a autoridade competente para dispor sobre a matéria provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que avalie, antes de ser autorizado qualquer acesso ao documento, se ele, uma vez acessado, não afrontará a segurança da sociedade e do Estado, na forma da ressalva prevista na parte final do inciso XXXIII do art. 5o da Constituição.


Cinco meses após esta MP, em 5/5/2005, foi sancionada a Lei 11.111, que ratificou os termos da MP. Ou seja, quatorze anos depois estava retrocedendo-se aos avanços da Lei de Arquivos de 1991. Certamente, a compreensão da legislação que regula tanto a guarda dos documentos públicos como também a sua disponibilização é de fundamental importância para o historiador e o cientista social, que têm no arquivo um dos seus principais instrumentos de trabalho. Torna-se, portanto, crucial o domínio desse aparato legal para que descubramos suas brechas. As regras estabelecidas na 11.111/2005 foram consideradas nos meios jurídicos como inconstitucionais, pois legalizaram a prática da confidencialidade por parte do governo. Passível de duração indeterminada, o segredo foi convertido em direito do Estado, contrapondo-se ostensivamente ao direito do cidadão às informações. A manutenção do sigilo instituiu, dessa forma, sua tutela exclusiva aos representantes do poder.
Dois anos após a sua instituição, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3987), com pedido de liminar, para suspender dispositivos da Lei 8.159/91 e a íntegra da Lei federal 11.111/05. No mérito, a OAB pede que seja declarada a inconstitucionalidade de todos esses dispositivos, que dispõem sobre o sigilo de documentos. (…) Informa a OAB que essa lei originou-se da Medida Provisória nº 228, de 2004. Só que, na data de sua edição, já vigorava a nova redação do artigo 62, da CF [Constituição Federal], que veda a edição de MPs sobre matérias relativas à cidadania (Emenda Constitucional 32). Alegando ainda o vício formal na elaboração da lei, segundo a OAB, a lei deve ser julgada inconstitucional na íntegra, porque a MP da qual se originou não teria observado o requisito constitucional de urgência para sua edição, como exige o artigo 62 da CF[5]. Embora ainda confusas em seus movimentos, as peças desse tabuleiro de xadrez tiveram suas posições claramente definidas. De um lado, os cidadãos que carregam a pecha de fichados, com as dificuldades que esse estigma lhes impõe; de outro, os que desejam empregar as prerrogativas constitucionais de acesso à informação, mas que se vêem tolhidos pelos argumentos de preservação da intimidade individual. É nessa seara, mais da dúvida do que das conclusões, que uma polêmica de quase uma década atrás retorna à pauta atual dos pesquisadores. Os momentos de imposição de sigilo e os instantes de quebra dessa “normalidade imposta” permitem refletir acerca da trajetória brasileira vis-à-vis seus períodos de arbítrio político. As origens de uma sociedade baseada no autoritarismo e na exclusão dimensionam o peso e o papel de uma cultura censora e repressiva no esforço de delimitar o legal e o ilegal. No Estado brasileiro republicano, essa foi uma tarefa, um ato de fundação, que pode ser constatada nos trabalhos acerca da força e da ação da polícia no início da República, e se explicita como forma de impor um determinado modelo de cidadão ideal. Essas questões, assim como as da construção de uma identidade nacional e do perfil do seu cidadão, foram tratadas exaustivamente em diversos trabalhos elaborados desde meados dos anos de 1980.

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Notas:

[1] O CONARQ é um órgão colegiado, vinculado ao Arquivo Nacional e instituído pela Lei de Arquivos. Sua finalidade é definir a política nacional de arquivos públicos e privados, como órgão central de um Sistema Nacional de Arquivos, bem como exercer orientação normativa visando à gestão documental e à proteção especial aos documentos de arquivo. Uma reflexão critica sobre a atuação do CONARQ, ver: SILVA, Sergio Conde de Albite. A preservação da informação arquivística governamental nas políticas públicas brasileiras. Niterói, Tese de Doutorado, UFF, Niterói, 2008.
[2] Retirado de: .Acessado em 22/7/2008.
[3] “Lula mantém sigilo de documentos decretado por Fernando Henrique”. Folha de S. Paulo, 24/4/2003.

[4] Reitere-se o texto da lei: “esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período”.

[5] “OAB contesta lei que regulamenta sigilo de documentos”, 20/11/2007. Publicado no site: Acessado em 21/7/2008.

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